Stan Lee nos deixou em 12/11/2018, aos 95 anos de idade. Completaria 96 anos em 28/12, mas nos deixou um pouco mais órfãos dos criadores do Universo Marvel de que tanto gostamos e curtimos. Já perdemos tantos grandes nomes, mas nenhum com a envergadura máxima de Stan Lee – afinal, ele personificou a Marvel até quase sua morte, com suas tiradas espertas nas redes sociais e suas pontas características e divertidas nos filmes e séries live-action da Marvel.
O sucesso da Marvel se deveu em grande parte a Stan Lee, pois além de ser um criador e roteirista ele era, antes de tudo, um showman, um hábil marqueteiro que vendeu como ninguém seus personagens e sua nova maneira de fazer quadrinhos. Lee viabilizou a própria mídia dos quadrinhos americanos (os comics) ao fidelizar seu público cativo (ao conversar diretamente com os leitores nas seções de cartas e tratá-los como se fizessem parte de um clube exclusivo) e ao expandir seu público-alvo, conquistando os universitários e apresentando os personagens à grande mídia, com suas hipérboles e frases de efeito, ultrapassando os limites infanto-juvenis que até então sabotavam a relevância dos quadrinhos nos EUA. Não foi apenas a qualidade das histórias que eram apresentadas que fez com que a Marvel se tornasse a maior editora de comics dos EUA, superando a DC, no início dos anos 1970, mas também o trabalho incansável de marketing e automarketing que Lee fazia. O personagem que criou no meio da grande mídia se tornou onipresente em rádio, TV, jornais e revistas – o showman promovia não só a si mesmo, como a seus personagens e a editora, onde entrou aos 16 anos, em 1939. Sim, exatamente quando a revista Marvel Comics #1 saiu – ele era a Marvel.
Nessa época, a editora ainda se chamava Timely, e pertencia ao marido de sua prima, Martin Goodman. Lee, ainda com seu nome real (Stanley Lieber) entrou como assistente e fazia de tudo – bem, quase tudo – ele ainda não escrevia. Porém, essa chance veio em outubro/1941, na revista All-Winners Comics #2, em que ele escreveu uma história em prosa (com arte de Jack Kirby). Aliás, nesse mesmo ano, Kirby e o editor Joe Simon (criadores de Captain America) saíram da editora (por causa da Segunda Guerra Mundial), Lee assumiu o cargo de editor interino. O próprio Lee seria convocado em 1942 e retornaria ao cargo em 1945.
Como editor, Lee começou a escrever histórias de todos os gêneros e estilos, já que a Timely publicava vários gêneros, como era praxe na época em todas as editoras. E isso foi lhe dando experiência e versatilidade, principalmente porque Martin Goodman publicava revistas de acordo com a moda da época – ou seja, Lee e os outros roteiristas tinham de estar sempre prontos para escrever qualquer coisa.
Dentro dessas “modas”, Goodman captou a nova onda que vinha com o sucesso da National (nome da DC na época) com o retorno do gênero dos super-heróis. Goodman, então, encarregou Lee e Kirby de lançarem uma nova linha de revistas de super-heróis. E aí se fez história – surgia o Universo Marvel que conhecemos.
Já falamos muitas vezes sobre a revolução criada por Lee, Kirby e Steve Ditko (também falecido há pouco), criando novos conceitos de super-heróis e revitalizando a continuidade nas histórias – se um herói quebrava o braço em uma edição, ele estava de tipoia na edição seguinte. Isso não era comum na época, quando as revistas apresentavam histórias “únicas”, sem grande preocupação com continuidade. Não bastasse isso, outra revolução foi a “humanidade” dos heróis – não se tratavam de deuses perfeitos (ou quase) como nas outras editoras. Os heróis da Marvel tinham limitações ou defeitos físicos, tinham problemas de relacionamento ou dinheiro, ficavam doentes, tinham discussões morais e motivacionais até mesmo com consigo mesmos. Eram heróis realmente humanos.
Stan Lee ainda faria outra revolução, que lhe causaria muitos problemas depois – ele criou o “método Marvel de roteiro”, no qual ele formulava algumas frases com ideias de uma história (frequentemente subindo na mesa ou fazendo alguma representação física), apresentava ao desenhista, para que este desenvolvesse a história em todas as suas páginas, e depois Lee retornava para pedir alterações e fazer os diálogos. Isso possibilitou que Lee se tornasse multitarefa – “escrevia” quase todas as revistas, editava tudo e ainda fazia suas campanhas de marketing pela mídia. Seu temperamento frenético e boa praça i transformava em um dínamo próprio, a alma da editora.
Como falamos, isso gerou atrito com Jack Kirby e Steve Ditko, principalmente, que se queixavam de “fazer todo o trabalho” e Lee levar os louros pelo que não fez. Porém, se Lee deu a ideia e depois fez correções e fez os diálogos, ele não criou conjuntamente? Eu acredito que sim, mas Kirby entrou em uma longa disputa jurídica e Ditko rompeu relações. De qualquer forma, é inegável que esse trio criou a maior parte dos grandes personagens dos anos 1960, a base para todo o patrimônio criativo da editora.
Stan Lee se tornou “publisher” da Marvel em 1972, ocupando o cargo de Martin Goodman (que saiu para fundar outra editora, a Atlas-Seaboard, que não foi adiante)… continuou com seu marketing agressivo em toda a mídia (além de continuar escrevendo as tiras de jornal de Spider-Man – o que fez até os anos 2000!) até se mudar, no começo dos anos 1980, para a Califórnia, com a intenção de expandir a Marvel por TV e cinema – e aí ficou até quase o fim da vida, pois aparecia frequentemente como coprodutor dos filmes e séries da Marvel.
Mesmo “aposentado”, Lee foi ampliando cada vez mais sua própria iconização na mídia a partir dos anos 1990, aparecendo em vários filmes e séries (não só da Marvel), aparecendo em talk shows, apresentando programas de TV, criando novos conceitos em outras editoras e simplesmente sendo uma celebridade. A memória de Stan Lee nunca foi um prodígio, nem em sua juventude – por isso, a maior parte das histórias do passado dele é contada pelos outros, por profissionais de várias áreas que conviveram com ele – e uma boa parte deles diz coisas deste tipo: “Stan Lee era ótimo para levantar o moral, aprendia-se a viver com ele.”
Polêmico, extrovertido, showman, um homem do show-business por excelência. Sempre jovial, Lee se queixava de problemas de saúde óbvios (devido à idade avançada) nos últimos anos. Não conseguia mais ler desde 2016, foi envolvido em escândalos até mesmo do #metoo (não comprovados), além de uma relação problemática com a filha. A esposa Joan faleceu há alguns anos, baqueando Lee, que se aposentou das aparições públicas (era figura habitual em convenções de quadrinhos), apresentando algumas internações por pneumonia. Até que nos deixou nesta segunda-feira, após ser levado às pressas para o hospital pela manhã.
Stan Lee não era apenas uma lenda viva, mas um legado vivo, pois sua longevidade permitiu que ele visse todos os seus sonhos realizados (até mesmo suas criações se tornarem os maiores blockbusters do cinema – e ele fazendo pontas). Esse legado nos deixou. É verdade que sua influência nos quadrinhos era praticamente nula nos últimos anos, mas ele ainda permanecia com o título máximo de “presidente emérito”. E não foi por menos.
Todas as suas criações estão tristes com seu falecimento. E nós, os “marvel zombies”, os marvetes, também somos suas criações, por tabela. Adeus e obrigado pelo que nos deixou. Excelsior… nuff’ said!