Durante a Copa da Rússia, fizemos um Umbigo Coletivo sobre Selene, a Black Queen, considerando que ela era uma personagem do tipo que “pode tudo, mas é sempre derrotada” – em suma, uma personagem com caracterização vaga, mas superpoderosa – um clichê de “supervilão definitivo”, mas que sempre se deixa derrotar por um detalhe. Porém, como o Umbigo Coletivo é uma série de posts mais rápida e espontânea, deixamos de lado um veio de análise ainda maior para ser explorado – e é o que vamos ver aqui agora.
De fato, Selene foi criada por Chris Claremont e Sal Buscema de uma forma bem genérica mesmo – era uma mutante adorada como deusa em uma colônia esquecida de Roma (Nova Roma) no meio da Amazônia, descoberta pela mãe de Sunspot (que era arqueóloga, por coincidência), em um arco de New Mutants (1983). Claremont tinha grandes planos em longo prazo para a personagem, que se tornaria um dos principais inimigos dos New Mutants e envolveria até mesmo ligações familiares com um dos membros da equipe – Magma (aliás, esse arco foi feito para introduzir as duas personagens). Porém, os roteiristas que assumiram a revista depois de Claremont foram tendo outros planos e a coisa se perdeu, assumindo outros rumos.
Por essa razão, Claremont definiu que Selene era uma mutante que era adorada como deusa (da mesma forma que acontecia com Storm, dos X-Men)… mas, mais adiante, acrescentou que ela tinha uma rivalidade multimilenar com o feiticeiro Kulan Gath. Acontece que Kulan Gath era um feiticeiro da era hiboriana (sim, a era de Conan e Red Sonja)… que é situada na cronologia Marvel em 12.000 anos antes de Cristo. Ora… se ela já existia nessa era, então o primeiro mutante a surgir na cronologia do Universo Marvel não foi Apocalypse (que apareceu na era da Civilização Egípcia – ali em 6.000-5.000 anos antes de Cristo), certo?
A constatação não teve lá tanta força, porque Kulan Gath foi para o limbo editorial (depois que a Marvel perdeu os direitos de Conan e Red Sonja) e a Marvel resolveu trilhar outros rumos com a personagem – o roteirista Fabian Nicieza até mesmo fez um retcon (depois desfeito por Claremont), dizendo que Nova Roma era uma farsa, criada por Selene para ser adorada como deusa. Mas, graças à descrição inicial da personagem, feita por Claremont, era uma deusa com poderes diferentes da “original”…
De fato, existiu uma deusa Selene na mitologia grega – era a deusa da Lua, filha dos titãs Hipérion e Geia, e que tinha como características a sabedoria, a onisciência e a beleza dos cabelos – como todas as divindades do Sol e da Lua dos panteões antigos, ela percorria a abóbada celeste com uma carruagem (simulando os movimentos da Lua). Mas Selene era uma divindade “menor”, que logo foi substituída por outras mais “fortes”: Ártemis e Hécate, com as quais alguns estudiosos atribuem uma forma de “trindade”. No entanto, dessas 3, apenas Selene era deusa exclusiva da Lua – e, talvez por isso, não tenha tido uma base de adoração muito grande: parece que houve apenas um culto organizado (e masculino) de Selene na Frígia, uma região da Anatólia (atual Turquia) que, na verdade, contribuiu muito para a mitologia grega com seus próprios deuses, que foram “miscigenados”.
Então, como se pode ver, a Selene “real” nada tinha a ver com a dos quadrinhos, e não seria a primeira vez que Claremont fazia isso – aliás, isso era uma prática que vinha desde outro roteirista importante, Roy Thomas: seu grande conhecimento literário fazia com que usassem nomes de personagens de obras literárias ou mitológicas que “soassem bem” para seus personagens de quadrinhos.
Claremont queria que Selene fosse uma mutante que pretendia se tornar uma deusa de fato – ou que atuara como uma deusa no passado e pretendia resgatar essa condição. Além disso, Selene era uma grande feiticeira (e daí sua rivalidade com Kulan Gath) e isso levava ao mesmo problema que se tem, até hoje, com Apocalypse: o que é a mutação e o que é magia ou tecnologia avançada?
No caso de Selene, parece que o fato de ser uma “vampira psíquica” seria seu poder mutante… mas não se tem certeza disso. No entanto, é uma habilidade mostrada por outros mutantes do Universo Marvel. Selene precisa, portanto, absorver a “energia psíquica” de outros humanos para se nutrir e se manter jovem. Se a absorção for completa, a vítima se torna uma pilha de pó… se for incompleta, ela pode controlar mentalmente sua vítima.
Selene também pode hipnotizar outras pessoas (o que pode ser místico), além de controle absoluto sobre a estrutura molecular de objetos inanimados (hein?!!). Depois, até mesmo chegou a demonstrar um poder de se transformar em energia sombria (a “darkforce” do Universo Marvel), e realizar várias proezas – o que foi abandonado. Isso sem falar dos encantos e feitiços que pode conjurar, sendo que muitos desses poderes e habilidades anteriores podem ser místicos ou resultados de sua mutação… quem sabe?
Ah sim, afora isso, ela também possui o pacote de superpoderes básico de aumentos de força, agilidade, resistência, vigor e velocidade. Ou seja, pode quase qualquer coisa. Como uma vilã desse jeito pode ser derrotada (e o é com frequência)? E, com tudo isso, para quê teria a obsessão de se tornar uma deusa?
O roteirista Fabian Nicieza pareceu tentar resolver a questão de quem era o primeiro mutante – para isso, criou o conceito de Externals – mutantes milenares que são imortais ou têm habilidades que permitam reviver ou sobreviver por longuíssimos períodos. Selene era um deles e, pensava-se que Apocalypse também seria (ou seja, abria-se a possibilidade de ele ser mais antigo que o que se pensava). Mas o roteirista Jeph Loeb acabou com a esperança, ao revelar que Apocalypse não era um External e, para completar, o roteirista Terry Kavanagh mostrou que o vilão realmente surgiu durante a Civilização Egípcia (contou até a origem de En Sabah Nur, o futuro Apocalypse, em uma minissérie chamada Rise of Apocalypse (1996))! A confusão continuava, e não importava muito, pois definia-se Apocalypse como o “primeiro mutante” e ponto final.
Apenas mais recentemente, no evento Necrosha (2009), é que os roteiristas Chris Yost e Craig Kyle revelaram que Selene não só existia na era hiboriana, como ainda antes disso – situaram sua origem na Europa Central, em 17.000 anos antes de Cristo, um pouco depois da submersão da Atlântida! Então, a menos que exista algum External mais velho que isso, ela é a “primeira” mutante do Universo Marvel (Apocalypse sofreu um retcon bizarro recentemente em que parece retomar a primazia, tendo regredido até a Pré-História, mas para fazer isso, ele estava no presente – eu disse que era bizarro… hehe).
Necrosha (2009) também concretizou o antigo sonho que Selene tinha de se tornar uma deusa, mas, como sempre, um detalhe fez com que conquistasse essa condição e logo depois a perdesse. Desde então, vem tentando se manter em posições de poder (inclusive dentro do governo americano).
Mas há um detalhe que não foi mais retomado – e poderia render situações interessantes. Lembra quando falamos que o culto a Selene nunca foi popular na Antiguidade? No Universo Marvel, parece que isso foi diferente porque, inclusive, Selene chegou a Nova York e se tornou membro do Hellfire Club (como a Black Queen) porque alguns membros do Hellfire Club faziam parte de um culto que a adorava! Ora, onde está esse culto em Nova York? Foi dizimado, ainda existe? Nenhum roteirista retomou isso (até os Externals já voltaram)… quem sabe agora? hehe
Fontes:
Revistas referidas
Official Handbook of the Marvel Universe
Wikipedia