Red Guardian e os Refuseniks… Não há bandidos e nem mocinhos

Ler quadrinhos “antigos” é uma experiência interessante, pois, mesmo que as histórias fossem “contemporâneas” na época, mostram fatos e realidades completamente diferentes do que conhecemos hoje (e isso vai acontecer com as histórias atuais daqui 10-20-30 anos). Muitas vezes isso está escancarado, em outras é mais discreto, mas as referências saltam aos olhos de quem viveu aquilo – como é o meu caso. Esses detalhes acabam atingindo outra dimensão até de memória afetiva, pois mesmo que fossem tragédias, nos lembramos do contexto da época e de uma série de outras coisas – e esse efeito os leitores atuais, que nasceram depois desses fatos, perdem completamente.

Séries de crítica social, como Howard the Duck (1976), são cheias de referências e fatos que até mesmo haviam desaparecido de nossas memórias – o que às vezes até complica o entendimento por quem desconhece, e a genialidade dos roteiristas (como Steve Gerber, no caso) fica obscurecida. Mas outras séries “normais” têm esses detalhes menos definidos, e podem ser lidas e entendidas sem problema por quem desconhece – porém, se você conhece, a coisa atinge outro patamar e dá uma satisfação maior ao ler as histórias.

É o caso de muitas histórias da Marvel dos anos 1960/1970/1980, onde a Guerra Fria era uma realidade bastante retratada nos quadrinhos da editora. Mesmo com os roteiristas se tornando menos “ideologizados”, não havia alienação que ignorasse que o mundo era bipolar: EUA x URSS. No caso, temos aí um exemplo do mesmo Steve Gerber, um dos mestres em inserir temas contemporâneos nas histórias, um pouco depois do que aconteceram, para evitar desgaste desnecessário com ânimos exaltados.

A história em questão saiu em Defenders (1972) #40 (outubro/1976), produzida por Steve Gerber e Sal Buscema, e a personagem principal é a Red Guardian, então membro dos Defenders. Nós já dedicamos um post exclusivo a Tanya Belinski, a neurologista russa que se tornou uma versão feminina do herói patriótico soviético/russo Red Guardian – depois ela se tornou Starlight, após obter poderes “radioativos” concedidos pelo supercientista soviético Presence. Starlight eventualmente se tornou uma heroína na Rússia até desaparecer em outra dimensão. Enfim, aqui ela está no início de sua jornada.

Ela estava refugiada nos EUA, após ter “mudado de lado” na Guerra Fria (fizemos também um post de Elementos em Comum aqui no blog, e ela está lá), e se tornou membro dos Defenders. Porém, a população não estava muito feliz com a presença dela entre os heróis americanos: como os Defenders podiam aceitar uma heroína comunista entre eles? (semelhanças com o momento atual mostram a atemporalidade de certos aspectos… hehe).

Numa dessas manifestações de repúdio, Red Guardian saiu à rua para capturar quem jogou uma pedra com um bilhete assinado por um “Comitê pela Emigração Livre” e acabou se metendo em uma situação que envolvia… refuseniks! O quê? E ainda um deles tinha superpoderes!

Os refuseniks fazem parte de um tópico típico da Guerra Fria, e envolvia um controle superestrito da URSS sobre emigrações, temendo “fuga de cérebros” para o Ocidente. Mas também envolvia aspectos autoritários de restrição de liberdade de grupos étnicos e religiosos – minorias alemãs, armênias e gregas, além de pessoas que seguiam a Igreja Cristã Ortodoxa, batistas, testemunhas de Jeová. Essas pessoas eram oprimidas pelo regime soviético, que não permitia que fugissem. Porém, o grupo mais afetado e mais “vocal” era o dos judeus – principalmente porque muitos judeus eram “cérebros” que não se queria que saíssem do controle do governo, principalmente sob receio de que revelassem segredos de Estado [além de passarem a colaborar com o inimigo]. A situação com os judeus era tamanha que, após tentarem sair do país, perdiam seus empregos e seus títulos acadêmicos e passavam a viver de trabalhos braçais ou até mesmo a serem presos por “vadiagem” ou “parasitismo social” e serem enviados para prisões na Sibéria.

Um caso emblemático ocorreu em 1970, quando um grupo de judeus soviéticos aplicou um “golpe” ao fretar um avião para um casamento e, antes que o avião partisse, expulsaram o piloto e o copiloto – o objetivo era fugirem da URSS por via aérea. O avião foi capturado pelo governo soviético ainda no território soviético e os líderes foram condenados à morte por terrorismo, o que movimentou muito a comunidade internacional e, após protestos, as penas de morte foram comutadas em penas de prisão de 4 a 15 anos.

Esses eram os refuseniks, e os anos 1970 foram especialmente pródigos em notícias sobre intelectuais ou cientistas soviéticos que queriam emigrar do país e não conseguiam, gerando campanhas internacionais. A URSS relaxou um pouco essa política em 1971, mas apenas com Mikhail Gorbatchev, em meados dos anos 1980 (um pouco antes do fim da URSS), foi que isso foi encerrado.

Muito bem, voltando à história de Defenders, Gerber usou o assunto dos refuseniks um pouco longe do seu pico de 1970-1971 (o episódio do sequestro do avião), para poder explorá-lo de outra forma. Polêmico como sempre, Gerber apontou que os refuseniks eram oprimidos, mas também adotavam táticas que poderiam ser tidas como terroristas (alguma semelhança com o duplo-padrão do debate público atual não é coincidência… hehe).

Na história, os “super”-refuseniks queriam usar Red Guardian como “chantagem” para forçar a URSS a libertar mais pessoas para emigrarem. Ora, mas a própria Red Guardian havia se refugiado, certo? Sim, mas ela representava um exemplo da “fuga de cérebros”, seria um ativo interessante para chantagear quem queria ela de volta – ora, ora, ora!

Red Guardian derrotou essa “célula terrorista” refusenik na mesma edição, e terminou dizendo que tinha que “pensar no assunto” depois de descansar. Mesmo mais distante do calor dos acontecimentos de 1970, e, portanto, de uma reação ruidosa dos leitores americanos contra a postura crítica de Gerber, o assunto ainda gerava comoção no noticiário americano. Muitos leitores estranharam (e estranham até hoje) a posição ambígua de Gerber, mas o fato é que ele mostrou a realidade de qualquer conflito: embora possa existir um lado mais oprimido que o outro em certas circunstâncias, as reações não são maniqueístas, não se trata de “bem contra o mal”. O próprio Doctor Strange se refere aos refuseniks (sem saber do que se tratava) no final da história como “terroristas” – o que, de fato, foram acusados no incidente de 1970-1971.

Fica difícil não simpatizarmos com os refuseniks da história real (mesmo os do incidente), mas o fato é que podiam se envolver em atos questionáveis – como mostra a história de Gerber. Felizmente o assunto dos refuseniks morreu com o fim da URSS, e o termo hoje foi incorporado no inglês coloquial dos EUA para designar qualquer pessoa que se recusa a fazer algo como protesto. Infelizmente, os “herdeiros” da URSS ainda praticam políticas parecidas… em pleno século 21.

Fontes:

Revistas referidas

Wikipedia